O EGITO FAZ A HISTÓRIA NOVAMENTE

 

Palavra do dia:

Parabéns: Mabrouk

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Oi gente, depois de umas férias um tanto quanto forçadas do blog eu enfim volto para “revolucionar” esta página!!!  Saí sim, fugida do Egito e ainda me encontro no Brasil, pois como todos sabem, o Egito passa por um momento incrível de mudanças para o mundo e para a história.

Hosni Mubarak

Após 30 anos de um governo injusto, repressivo e antidemocrático, cujo (ex) presidente Mubarak é um homem arrogante e alheio aos problemas do país. O povo, cansado e faminto se levanta, cria coragem e sai às ruas em uma manifestação que, no principio foi inesperada e frágil, mas que no fim, provou ser a maior conquista de todos os tempos para o país.

Eu estava lá quando tudo começou e hoje vou contar a vocês tudo aquilo que vivenciei, tentando juntar a maior quantidade de detalhes possíveis e acrescentando obviamente, minha história pessoal.

Após meus gratos 30 dias de férias no Brasil, retornei ao Egito no dia 21 de janeiro, juntamente com minha sogra Iradi, que há meses aguardava por este momento. Meu marido Rodrigo já havia retornado, mas estava em Dubai a trabalho e chegaria no domingo. Era sábado, cerca de nove e meia da noite quando aterrissamos na cidade do Cairo, dia que teve inicio minha saga.

Tudo começou já na esteira de bagagens. De quatro malas que trazíamos apenas duas, as que pertenciam a minha sogra chegaram. Foi super divertido ver a esteira parar de se mover e perceber que minhas malas (grandes e com toda a minha vida dentro) não haviam chegado.

Fui ao balcão de reclamação de bagagens e tentando inutilmente manter a calma solicitei ao atendente por informações. De nada adiantou, o homem sabia  menos do que eu!! Não tinha a menor noção de onde estavam minhas malas. Saí de lá frustradíssima e pensando o que seria de mim sem minhas coisinhas queridas. A única alegria era saber que o “salame” e a “copa” haviam chegado em segurança. No outro dia fui informada que haviam encontrado uma das malas e aproveitei que iria buscar o Rodrigo no aeroporto para resgatá-la.

Na segunda-feira, dia 24 de janeiro, a cidade ainda estava calma (dentro do possível para o Cairo, obviamente) e não tínhamos a menor idéia de que o povo secretamente (ou não) se organizava para realizar as manifestações e os protestos contra o presidente Mubarak. Na terça-feira era feriado e seguindo um roteiro turístico, levamos minha sogra nas pirâmides de Giza.

No dia seguinte, uma amiga me liga preocupada alegando que os egípcios se organizavam para um manifesto e que eu deveria ser cautelosa com relação aos lugares que levaria minha sogra. Confesso que não levei muito a sério, e mesmo vendo as informações trocadas através do Facebook, achei que aquilo não passaria de uma bobagem. Ainda sim fomos às Pirâmides de Sakara na quinta-feira.

A confusão toda começou na sexta-feira, dia 28 de janeiro de 2011 precisamente.  Ao acordarmos, percebemos que os telefones e a internet não estavam funcionando. Achamos aquilo um absurdo. Como o governo tem a coragem de privar os cidadãos de algo básico que é a comunicação? Fiquei furiosa!! Assistimos as notícias na TV e as pessoas ainda não estavam nas ruas e nem pareciam se preparar para o manifesto. Resolvemos então, não mudar os nossos planos e ir ao shopping City Stars que fica a cerca de 30 quilômetros da minha casa.

As ruas estavam vazias, o que é até normal para uma sexta-feira, dia que os muçulmanos estão nas mesquitas. Mas, ao nos aproximarmos do shopping, um grupo de manifestantes caminhava em direção ao centro do Cairo, bloqueando nosso caminho. Foi preciso desviar e procurar um novo trajeto até o shopping. Muitos motoristas paravam nas ruas para tirar fotos e todos pareciam surpresos com a quantidade de pessoas que se juntavam a cada rua que a passeata passava.

Almoçamos, passeamos, minha sogra fez compras e mesmo percebendo que já eram quatro horas da tarde e o shopping estranhamente permanecia vazio, não nos abalamos. Fomos ao aeroporto em uma tentativa frustrada de recuperar a outra mala que, pela falta de comunicação, não sabíamos com certeza se estaria lá. O funcionário do aeroporto surpreso ao nos ver, e após confirmar que a mala não havia sido encontrada diz:

– Não sei se vocês estão a par do que está acontecendo na cidade, mas o governo implantou um toque de recolher ás dezoito horas.

– Toque de recolher????

Senti como se estivéssemos nos tempos da ditadura militar ou algo parecido. Sem comunicação, sem liberdade de ir e vir, o que mais faltaria? Cheguei a pensar que o funcionário queria apenas livrar-se de nós, mas foi aí meus amigos, que percebi como eu estava sendo ingênua…

Ao sair do aeroporto, atravessando pela Ring Road, uma estrada que contorna todo o Cairo, percebi que estávamos em uma fria. Homens e crianças caminhando pela avenida armados de facões, pedaços de ferro e madeira trancavam o trânsito como se tivessem tomado a cidade. Carros de polícia incendiados, pedras e pneus bloqueando a passagem dos carros, cujos motoristas assustados, obedeciam à nova sinalização de trânsito imposta pelos protestantes.

Fogo e destruição nas ruas do Cairo

A cidade estava sendo destruída! As lojas estavam fechadas, carros na contramão parecendo fugir do tumulto e coquetéis molotovs sendo jogados de cima das  pontes. A polícia havia sumido das ruas. Não tínhamos a menor segurança e o medo começou a me rondar. Temia que por sermos estrangeiros, os manifestantes revoltados pudessem querer nos agredir, confundindo-nos com americanos, que não estavam muito bem cotados no momento.

Os protestantes passavam pelos carros olhando para dentro como se a procura de algo, batendo nos vidros como quem nos obrigando a participar de suas revoltas. Começamos a buzinar como forma de aprovação ao manifesto, apenas para disfarçar. Eles correspondiam aos buzinaços vibrando nas ruas, vitoriosos pela coragem que haviam demonstrado ao se opor contra um governo que, inutilmente havia tentado evitar a manifestação.  Seus olhares eram de raiva e medo. Nunca vou me esquecer da expressão das crianças que, naquele dia, mais pareciam ser soldados de guerra experientes.

Fomos desviados de nosso trajeto inúmeras vezes, ou por força dos homens que coordenavam o trânsito ou por carros incendiados que tornavam a passagem ainda mais arriscada. Num certo momento, jogaram um líquido no teto de nosso carro. Não sabíamos se era água ou gasolina. Passei a mão para tentar identificar o cheiro. Era água!! Não podíamos arriscar mediante todo aquele fogo espalhado, que uma faísca sobrasse para nós. Foi bastante tenso.

Levamos cerca de três horas para chegar a nossa casa. Ao chegar, senti um alívio confortador. Desde então, passamos a acompanhar os noticiários vinte e quatro horas por dia.

Não conseguíamos dar notícias aos nossos familiares. Não sabíamos como as notícias chegavam até eles. A televisão pode ser extremamente sensacionalista e isto nos preocupava, pois estávamos bem. Foi quando resolvi, sem muita fé, ligar nosso telefone cuja linha é brasileira. Incrivelmente consegui sinal. Foi o suficiente para ligar para meu pai e avisar que tudo estava bem. A linha então não voltou mais.

Protestos na Praça Tahirir

No sábado pela manhã, minha amiga que mora em nosso bairro foi até a nossa casa. Estávamos todos preocupados uns com os outros, principalmente com aqueles amigos que moravam nos arredores da Praça Tahirir que a esta altura, já estava lotada de manifestantes. Resolvemos nos encontrar na casa dela ao final da tarde, a fim de descontrair um pouco. Os telefones já haviam retornado, mas a internet não. Nosso bairro é bastante afastado do centro da cidade e estávamos supostamente seguros. Ao menos foi o que pensamos…

Cerca de sete horas da noite, nossos amigos recebem uma ligação de uma vizinha dizendo que nosso bairro estava sendo invadido por saqueadores. Ficamos bastante assustados e Rodrigo, minha sogra e eu não sabíamos se seria seguro voltar para casa.  Ficamos por lá durante algum tempo e enfim, criamos coragem e saímos.

No caminho para casa, as cenas que mais me chocaram: os moradores dos condomínios tomavam as ruas, fazendo barreiras para revistar carros e pessoas suspeitas. Homens armados estavam defendendo suas casas e suas famílias, já que a polícia havia desaparecido completamente. Chegamos a porta do nosso condomínio e o mesmo estava muito movimentado. O lugar também estava sob a vigilância dos moradores, pois o presídio próximo dali havia sido invadido e os presos todos soltos. Nossa noite foi tumultuada e mal dormida. A cada barulho que ouvíamos, os mesmos que nas outras noites nunca nos chamaram a atenção, desta vez nos faziam acordar assustados e alertas.

Passaporte de Emergência

Os protestos cada vez se intensificavam mais e os estrangeiros estavam começando a deixar o país. As embaixadas começavam a organizar a retirada de seus funcionários e demais residentes. A Embaixada do Brasil não se manifestava e sequer atendia ao telefone. Uma verdadeira vergonha. O embaixador simplesmente não deu a menor importância aos brasileiros. Não sabíamos o que fazer. Começamos a pensar em sair do país, mas havia um pequeno detalhe: o passaporte do Rodrigo estava retido em um prédio do governo egípcio para a renovação do visto de trabalho.

Ele chegou a pedir que eu e minha sogra fossemos embora sem ele. Nos recusamos. Não poderia deixá-lo lá e arriscar que a situação piorasse ainda mais. A possibilidade de ficar sem comunicação era iminente e então tratamos de ir atrás de outra solução. Uma que incluísse os três. Precisávamos de um novo passaporte.

Estávamos sem gasolina. Os postos de combustível estavam fechados e não eram abastecidos devido ao toque de recolher, que a cada dia era antecipado em uma hora. Os supermercados, aqueles que não haviam sido saqueados, funcionavam por um pequeno espaço de tempo e os bancos estavam fechados. Os shoppings estavam sendo invadidos. As lojas com suas vitrines quebradas e suas mercadorias levadas. O Museu Nacional havia sido arrombado…

Museu vandalisado

Antiguidades inestimáveis foram quebradas. Anos de histórias reduzidos a cacos espalhados pelo chão. Múmias com suas cabeças arrancadas e peças de ouro roubadas para virar bijuteria. Os cidadãos egípcios uniram-se para defender seu patrimônio e sua história e conseguiram, por algum tempo, evitar que os vândalos aproveitadores da situação, continuassem a barbárie contra o museu. Uma cena bonita e comovente no meio de tanta revolta.

Já havia se passado algum tempo e não estávamos mais suportando os dias inúteis, presos dentro de casa. A falta da internet nos deixava apenas com o jogo de paciência e filmes antigos gravados. Nosso corpo doía de tanto ficar sentado no sofá nada confortável. Nossa maior diversão era observar os nossos vizinhos fazerem guarda em frente ao condomínio, desta vez inutilmente, pois já havia um tanque militar estacionado em frente a nossa rua. 

Os militares estavam fazendo a proteção das ruas, já que a polícia ainda não havia retornado. Tanques e soldados estavam espalhados por toda a cidade. Ladrões e fugitivos estavam sendo pouco a pouco capturados. Mas no fundo, não sabíamos se eles eram realmente amigos ou se a qualquer momento se voltariam contra o povo, seguindo as ordens do presidente Mubarak, que se recusava a deixar o poder.

Decidimos finalmente, voltar ao Brasil. A situação não parecia ter um fim próximo e já havíamos esperado demais. Pobre de minha sogra que teria que voltar apenas com as pirâmides como lembrança. Nem uma passadinha pelo Khan Al Khalili para fazer umas comprinhas foi possível. Os free shops dos aeroportos foram a salvação.

Tanque militar em frente ao nosso condomínio

Conseguimos contato com a embaixada e após certa relutância dos funcionários, meu marido foi até lá, com a esperança que o combustível fosse suficiente, emitir um passaporte de emergência. Para chegar ao prédio ele precisaria passar pelos protestantes, justamente no dia que os egípcios haviam sido convocados para a caminhada, que prometia um milhão de pessoas. Pela primeira vez, ficamos felizes por ele ter aparência de egípcio…

Nossas passagens foram emitidas para a quarta-feira dia 02 de fevereiro, porém, com a ausência da internet, não tínhamos como emiti-las. Os colegas do Rodrigo que estavam no hotel próximo a Suez, receberam nossas passagens via fax. Combinamos de nos encontrar no aeroporto no dia seguinte.

Ao chegarmos ao aeroporto, ainda sim, tentei mais uma vez inutilmente resgatar minha mala que já se encontrava no Cairo (sim, eu estava preocupada com a minha mala). Mas não havia tempo hábil. Voltei com uma malinha contendo poucas coisas essenciais.

Notícias que gaúchos estavam retornando do Egito já estavam se espalhando por todo o RS. Repórteres de rádios e jornais estavam tentando entrar em contato conosco. Demos algumas entrevistas por telefone, mas não sabíamos que a repercussão seria tão grande. Foi engraçado chegar a Porto Alegre e ser recepcionada por flashes das câmeras fotográficas. Parecíamos estar chegando da guerra. Ou estávamos?

Com o retorno da internet conseguimos nos comunicar com amigos que saíram do país ou ainda estão por lá. Agora com a queda do presidente talvez as coisas se ajeitem. Lentamente as pessoas estão retornando ao Egito. Muitos estão esperançosos.

Para mim é difícil acreditar que um país acorrentado por trinta anos, saia sem feridas de uma revolução tão marcante. Fiquei sim, orgulhosa do povo egípcio que bravamente lutou contra o medo e realizou essa grande façanha. Fiquei triste por aqueles que morreram desnecessariamente, embora que pelos seus ideais.

Mesmo assim, custo a me convencer que a solução foi acertada. Não existem pessoas preparadas para liderar um povo tão maltratado. Não existem pessoas emocionalmente preparadas. As questões do Egito vão muito além das econômicas. Questões que nosso mundo liberal não faz a menor idéia que existam. Religião, ignorância e atraso cultural são apenas algumas das diferenças. Será que os egípcios estão preparados para enfrentar as conseqüências da democracia?

Novos grupos políticos devem se formar. Novos “Mubarak’s” estarão surgindo em meio a esses grupos. Todos querem uma fatia do que a miséria e a ignorância podem oferecer. Eu realmente espero que “Alah” olhe por este povo e não permita que a história se repita.

Parabéns ao povo egípcio pela sua coragem e bravura. Coragem que muitos de nós brasileiros não ousamos ter. O mundo está orgulhoso de vocês. Suas vozes foram ouvidas. Estamos todos torcendo para que as mudanças venham junto com o sol que brilha intensamente nesta terra todos os dias.

Beijo à todos

10 comentários (+add yours?)

  1. nely esteves
    Fev 20, 2011 @ 10:18:00

    Oi, Andreia. Acabei de ler o seu blog. Descobri através da Elaine, que mora em Alexandria. Posso imaginar o que vcs passaram. Morei no Egito durante 7 anos e voltei para o Brasil em agosto passado. Parece que Deus sabia quando deveria me trazer de volta. Eu morava em Alexandria e sempre comentava com meus alunos que o único jeito para o Egito seria uma revolução. Fiquei muito feliz quando aconteceu. Acompanhava diariamente o sofrimento do povo de lá, sem ter o que comer e trabalhando dia e noite pra conseguir manter o básico para a familia, realmente um horror!!!!!!
    Concordo com vc quando disse …outros Mubaraks virão… sim isso é verdade, outros virão e não acredito que o povo esteja preparado para ser livre como merece e como deseja. Será que eles sabem o que é liberdade??????? Há necessidade de muito aprendizado e ainda muito sofrimento, mas é assim mesmo que se faz uma nação livre! Parabéns adorei o seu blog e sei que foi realmente assim o que vc passou e escreveu. Beijos, Nely

    Responder

  2. Dai Ferreira
    Fev 17, 2011 @ 12:31:44

    Caraca!!
    Adorei a parte do Rodrigo parecer egípcio…eh eh
    Importante é que estão bem.

    Abração
    Daiane

    Responder

  3. egitoebrasil
    Fev 17, 2011 @ 12:07:18

    muito legal e completo seu relato!!! que bom que deu tudo certo com sua familia, imagino o desespero pq qdo estamos longe do nosso país tudo se torna pior ainda!!

    e sua mala, conseguiu resgatar depois? eheheh

    beijos

    Responder

  4. Cris
    Fev 16, 2011 @ 09:35:44

    Nossa amiga, que coisa hein! Vcs passaram por maus bocados Dada! Estava bem preocupada com vcs, que bom que estão bem! Te espero para uma visita aqui em Cacias tah?? Amo d montão! Beijooss

    Responder

  5. Karina
    Fev 16, 2011 @ 08:03:01

    Oi Andréia!

    Encontei seu blog pesquisando as roupas ideais para usar no Egito. Parabéns, você escreve muito bem e estou me divertindo com as estórias!

    Só que agora tudo mudou, não é? Compramos nossas passagens ainda ano passado, para irmos em maio próximo. Acha que vai estar mais calmo por lá? Acha prudente irmos mesmo?

    Um beijo,

    Karina

    Responder

    • Andréia Feijó
      Fev 16, 2011 @ 12:45:36

      Oi Karina.
      Obrigado por acompanhar minhas historinhas.
      Acho que você pode ir em Maio sem problemas. Os locais turísticos já estão abertos e o povo está mais calmo e feliz. Apenas fique atenta nas notícias. Se você perceber algo de anormal, adie a viagem!!

      Responder

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